CÉLULAS-TRONCO 
   As células-tronco estão presentes desde a vida embrionária      até a vida adulta, e provavelmente até nossa morte. São      elas as responsáveis pela formação do embrião      e também pela manutenção dos tecidos na vida adulta.      No início da vida embrionária, as células-tronco são      virtualmente totipotentes, ou seja, apresentam capacidade de gerar quaisquer      tecidos do organismo. Contudo, após a formação do embrião      propriamente dito, diversos tecidos mantêm células-tronco que      participam da fisiologia normal (e da patologia também) na vida adulta.
   Conceitualmente, as células-tronco apresentam duas características      fundamentais: 1) auto-renovação ilimitada, por exemplo, a capacidade      de multiplicar-se gerando células iguais à célula-original      durante toda a vida, e ; 2) pluripotência, como, por exemplo, a capacidade      de gerar diferentes tipos celulares.
   Apesar de existirem em baixa freqüência, seus números são      suficientes para manter os tecidos que necessitam de renovação      constante. Em alguns sistemas onde são bem caracterizadas, sua freqüência      é estimada em 1 para cada 100.000 células totais daquele tecido.      As células-tronco, à medida que se dividem, geram progenitores      comprometidos, com uma capacidade de proliferação ainda mais      limitada e um restrito potencial de diferenciação devido ao      comprometimento com uma linhagem celular única. A partir deste ponto,      esta célula já comprometida chamada precursor, já possui      morfologia definida e seu potencial proliferativo é limitado ou mesmo      nulo.
   As células-tronco mais bem conhecidas, são as células-tronco      do tecido hematopoiético, identificadas por Till e McCulock há      mais de 40 anos. Recentemente, outros tecidos tiveram suas células-tronco      identificadas como do sistema nervoso, fígado, pele e mucosas, intestinos      e até mesmo coração.
    Hematopoiese
   
   O tecido hematopoiético se desenvolve na vida adulta de maneira hierarquizada.      A Célula Tronco Hematopoiética (CTH) é multipotente e      imortal, ou seja, apresenta potencial para diferenciar-se em qualquer célula      hematopoiética e pode ao longo prazo gerar outras células-tronco.      As CTH originam as Células Progenitoras Hematopoiéticas (CPrH),      que são células determinadas às diferentes linhagens      hematopoiéticas, com alto potencial e taxa de proliferação.      Essas por sua vez originam as Células Precursoras Hematopoiéticas      (CPH) e Células Maduras (CM) do sangue e de outros órgãos,      sendo totalmente diferenciadas morfo e funcionalmente.
    No sistema hematopoiético, o papel das células-tronco é      muito claro. Por hora, produzimos 1-5x109 células vermelhas e 1-5x109      células brancas. A produção desses tipos celulares, os      três principais dentre outros elementos celulares do sangue, é      constante e necessária já que a meia vida das células      sanguíneas é muito curta, sendo em alguns casos da ordem de      horas. 
   A homeostasia do tecido sanguíneo é rigidamente regulada e      qualquer alteração nessa dinâmica entre morte e produção      celular resulta em algum processo patológico. Por exemplo, quando não      há produção de células novas ou há morte      em excesso de células diferenciadas, temos aplasias ou anemias. Por      outro lado, quando temos uma produção exacerbada de novas células      ou uma resistência maior de células diferenciadas à morte,      temos neoplasias ou cânceres. Esses desequilíbrios também      ocorrem em tecidos de outra origem como tecido nervoso, conjuntivos (osso,      cartilagem) e tecidos epidermais (pele, intestinos, estômago, e glândulas).
   Câncer: "desdiferenciação" ou doença      da célula-tronco?
   Classicamente, aprendemos que um câncer é uma célula imortal,    ou que é uma célula que apresenta características embrionárias    pois, como muitos tecidos embrionários, é uma célula que    não apresenta um estado de diferenciação claro e, ao mesmo    tempo, apresenta uma notória capacidade de proliferação.    Esse conceito evoluiu para "o câncer é uma célula incapaz    de diferenciar-se" refletindo o antigo conceito de células com características    embrionárias no indivíduo adulto.    Atualmente, o conceito de um câncer como uma doença de células      que não se diferenciaram ou que perderam seus mecanismos de controle      de proliferação evoluiu para "o câncer é uma      doença da célula-tronco".
   Inicialmente, aprendemos que um câncer tem uma capacidade de proliferação      ilimitada. Contudo, o que parece é que um tumor, seja um tumor sólido,      seja uma leucemia (câncer das células do sangue), se comporta      como uma unidade tecidual, com uma dinâmica de renovação      que envolve proliferação e morte de uma população      celular heterogênea. Esta heterogeneidade aparece principalmente em      relação ao potencial proliferativo dessa população.
    Leucemias: um modelo enriquecedor
    Se pensarmos numa leucemia da maneira clássica descrita no item anterior,      na qual todas as células são capazes de proliferação      ilimitada, qualquer célula purificada de uma população      de células leucêmicas seria capaz de proliferar indefinidamente      tanto in vitro quanto in vivo. A partir da década de 60, pesquisadores      como Bruce e Gaag, Wodinsky, entre outros, e posteriormente Park e seus colaboradors      no início dos anos 70, apresentaram as primeiras evidências de      que isso não era verdade. Esses últimos evidenciaram que apenas      1 a 4% de células leucêmicas de camundongos eram capazes de formar      colônias1 quando transferidas para outro animal geneticamente idêntico.
   A origem da célula tronco leucêmica (CTL)
   
   Uma determinada leucemia pode ser vista como um tecido hematopoiético      anormal iniciada por CTLs que sofrem uma desenvolvimento aberrante e pouco      controlado. As CTLs podem ser CTHs que se tornaram leucêmicas como resultado      de alterações acumuladas (1) ou progenitores mais comprometidos      que readquiriram capacidade de autorenovação da célula      tronco (2).
    Mais recentemente, isso foi demonstrado para leucemias humanas, por Blair      e colaboradores e Bonnet e Dick. Utilizando camundongos imunodeficientes (animais      desprovidos de sistema imune e portanto incapazes de rejeitar quaisquer células),      mostraram que apenas uma fração de células leucêmicas      de leucemia mielóide aguda (LMA) era capaz de gerar doença (por      exemplo, proliferar). Essa população correspondia à fração      com características de células-tronco, similares às células-tronco      hematopoiéticas2. Mais do que isso, mostraram que as outras populações,      que não apresentam as características da célula-tronco,      não eram capazes de gerar a doença e que a freqüência      das células capazes de gerar doença era extremamente baixa,      variando de 0,2 a 1% da população total de células doentes.
   Muitas leucemias, e alguns tumores sólidos também, apresentam      anormalidades genéticas que, por sua vez, caracterizam a patologia      ou, por outras vezes, correlacionam com o prognóstico da doença.      De qualquer forma, tais anormalidades nos gens, que envolvem deleções      ou translocações de cromossomos ou suas partes servem para identificar      essas células tumorais e talvez sua origem. Ainda na leucemia mielóide      aguda (LMA), a anormalidade cromossômica mais comum é a translocação      de parte do cromossomo 8 que se justapõe ao cromossomo 21, identificado      como um transcrito quimérico chamado AML1-ETO. Em pacientes em remissão      da LMA, o transcrito AML1-ETO, pode ser encontrado nas células-tronco      hematopoéticas normais, e as mesmas células quando isoladas      são capazes de gerar células sanguíneas normais, assim      como não foram capazes de gerar leucemia. O que indica que a translocação      ocorreu nas células-tronco, mas alguma ou algumas alterações      a posteriori foram necessárias para a transformação maligna.      Isto é verdade em outros tipos de leucemias, como na leucemia mielóide      crônica, onde um produto de translocação gênica      (específico dessa leucemia) aparece não só nas células      leucêmicas, mas também em células hematopoiéticas      normais e também em outros tipos celulares como no endotélio.      Este último tem a mesma origem embriológica que as células      do sangue, indicando que a translocação ocorreu numa célula      tronco embrionária, que originou tanto o tecido hematopoiético      que se malignizou quanto os vasos sanguíneos, que são normais.
   
   A manutenção de um tecido tumoral baseado em uma célula      tronco tumoral leva a complicações biológicas no curso      da doença. A maioria dos métodos de tratamento quimioterápicos      têm como alvo células em proliferação (células      vermelhas). As células tronco (células azuis) são pouco      freqüentes e quiescentes portanto resistentes a esses tratamentos. A      longo prazo elas voltam a compor um novo tecido tumoral (1). Baseados nos      estudos da biologia da célula tronco, a diferenciação      das células tronco tumoral, a tornaria sensível à quimioterapia      (2). O mesmo aconteceria ao estimular a proliferação da célula      tronco tumoral (células verdes - 3).
    Acredita-se que a transformação maligna se dá pelo      acúmulo de mutações, que podem ser acompanhadas ou não      de aberrações cariotípicas (anomalias genéticas      citadas acima). A probabilidade das alterações ocorrerem se      relaciona ao potencial proliferativo da população em questão.      Por isso, essa transformação maligna pode não ocorrer      na célula-tronco, que é uma célula com freqüência      quiescente, mas pode ocorrer em seus progenitores, que são células      que passam por vários ciclos de divisão para expansão      da população periférica. De fato, podemos até      propor que a baixa freqüência das células tronco adultas      somado a sua quiescência a protegem de mecanismos de transformação      maligna.
   Câncer de mama
    Assim como o tecido hematopoiético, o tecido mamário possui      células-tronco capazes de gerar diversos tipos celulares.
   Se nos lembrarmos da função da mama, que é a produção      de leite durante o período de gestação e lactação,      podemos dizer que a mama por excelência é um tecido displásico.      Responde à gestação com hipertrofia, proliferação      e especialização de células epiteliais que produzem leite,      regredindo após a lactação. O tecido mamário é      notoriamente formado pelo desenvolvimento de ramificações, botões      mioepiteliais que adentram o tecido adiposo subjacente quando em desenvolvimento.      Ao final das terminações existe um sítio com células      tidas como células-tronco da mama: as mesmas geram células progenitoras,      que dão origem a uma camada externa, mioepitelial, e outra população      que forma uma camada interna, que se diferenciam para formar a luz do tubo      em desenvolvimento.
   Analogamente às leucemias, o câncer de mama parece depender      de uma célula-tronco para se manter, porém um modelo baseado      em células-tronco para câncer de mama surgiu apenas no ano passado      .
   De maneira similar ao realizado com as leucemias do sistema hematopoiético,      Al-Hajj e colaboradores separaram diversas subpopulações de      células de câncer de mama em função da presença      de marcadores moleculares específicos e injetaram em camundongos imuno-incompetentes.      Das várias subpopulações, apenas uma foi capaz de gerar      tumores nesses camundongos, com toda a heterogeneidade celular presente na      população original. Esses dados mostram que também, neste      caso, há uma célula-tronco cancerosa, e que apenas esta é      tumorigênica.
    Implicações
    A pesquisa e caracterização de células-tronco tumorais      é crucial no entendimento do câncer enquanto doença. Muitas      das informações que obtemos e derivamos para o diagnóstico,      prognóstico e tratamento dessa patologia deriva de populações      heterogêneas, com diferentes graus de maturação. Cada      vez mais temos a noção de que o câncer é um tecido      ou uma unidade tecidual, que se desenvolve com suas próprias células-tronco,      assumindo um crescimento que não corresponde ao padrão do organismo.      Neste momento, cada vez mais se torna urgente a caracterização      das células-tronco tumorais para otimização das metodologias      de diagnóstico e avaliação de prognóstico. Um      melhor ou pior prognóstico está relacionado à freqüência      de células-tronco em um tumor. A conseqüência direta é      a necessidade do desenvolvimento de estratégias terapêuticas      que consigam atuar sobre as células-tronco, e não apenas sobre      as células com alto potencial proliferativo, porém com baixa      capacidade de autorenovação. Essas estratégias deverão      considerar a especificidade dos marcadores das células-tronco, sua      baixa freqüência e baixa taxa de proliferação que      a torna resistente aos quimioterápicos ciclo-dependentes. Quem sabe,      num futuro próximo, novas formas de regular o crescimento e manutenção      da célula-tronco, estarão disponíveis para o tratamento      das doenças malignas.